terça-feira, 16 de novembro de 2010

Horrorshow!


"Oh bliss! Bliss and heaven! Oh, it was gorgeousness and gorgeousity made flesh. It was like a bird of rarest-spun heaven metal or like silvery wine flowing in a spaceship, gravity all nonsense now. As I slooshied, I knew such lovely pictures!"

Nas imortais palavras do nosso velho amigo Alex. Esse trecho da narração ilustra a êxtase quase psicótica, quase erótica que o nosso heroi improvável sente ao ouvir a Nona de Ludwig Van. Ele menciona isso naquela cena que tem umas estatuetas de Jesus, umas explosões, o Alex com dentinhos de vampiro, você provavelmente se lembra.

Quem por alguma razão certamente muito escrota ainda não viu Laranja Mecânica não vai entender muito bem isso que eu acabei de mencionar. Quem já viu, ou pelo menos conhece bem o filme, sabe tão bem quanto eu o quão importante é o papel da música clássica nessa obra. Um dos detalhes que faz de Alex um personagem marcante é o seu gosto musical refinado, e a forma como ele incorpora a beleza artística dessa música à "beleza artística" da violência e da pervesão que ele adora praticar. A grandiosidade da sinfonia, o seu peso, sua imponência; tudo isso invade o coração do pequeno Alex, fazem ele se sentir colossal e onipotente como um deus grego ou um imperador romano. Seu sangue esquenta, seus músculos se retesam, suas pupilas se dilatam e seu pau fica duro.

A Nona de Luwig Van marcou a história do cinema como o tema musical de um jovem delinquente e psicopata. Se você acha que isso é um uso um tanto sacrilegioso demais para um clássico de importância tão grande para a história da música, eu gostaria de informar os puristas do rock clássico que quem quase ocupou esse cargo do Beethoven no filme de Kubrick teria sido ninguém menos que o Pink Floyd.




Naquele mesmo ano de 1970, quando Laranja Mecânica estava sendo filmado, o Pink Floyd tinha recentemente lançado o seu quinto disco, "Atom Heart Mother", o famoso "disco da vaca". Ele é marcado pela música de mais ou menos meia hora que ocupa o lado A inteiro do vinil, entitulada "Atom Heart Mother Suite". Se trata de uma verdadeira sinfonia escrita em conjunto pelos quatro integrantes da banda e o compositor erudito Ron Geesin, dividida num total de seis partes bastante distintas. O que marca a suite certamente é o tom grandioso e apoteótico dos arranjos de metais e as vozes ressonantes de um coral ao fundo. Quando se ouve a música da primeira vez é bem fácil de se sentir toda a força da ambição (ou "pretensão", caso você não goste dela) do Pink Floyd ao criar uma sinfonia prog tão avassaladora.

O detalhe é que o poder musical apoteótico que move as engrenagens do Atom Heart Mother é essencialmente o mesmo da Nona de Luwig Van, que nosso Alex gosta tanto. É a essência do horrorshow. Não é muito difícil de se imaginar a distopia de Kubrick sendo orquestrada pelo Pink Floyd.

Foi com isso em mente que o diretor recorreu à banda, solicitando o uso da suite como tema musical para o filme. Kubrick queria utilizar a suite na íntegra, usando as diversas partes da música como fundo para algumas cenas do filme. "Father's Shout", o tema de abertura da suite que se repete várias vezes ao longo dela, acabaria virando sem dúvida um dos temas mais icônicos da obra de Kubrick, talvez até tão icônico quanto a música em 2001: Um Odisséia no Espaço. Infelizmente não foi esse o caso.

Quando exigiu o direito de utilizar indefinidamente a suite inteira ao longo do filme, Kubrick acabou deixando os integrantes da banda um pouco desconfiados. O Pink Floyd nessa época já tinha alguma experiência na área cinematográfica; enquanto seu famoso The Wall ainda era um espermatozóide boiando nos tésticulos artísticos do Roger Waters, a banda já tinha feito a trilha do filme More, do diretor francês Barbet Schroeder. Sendo um grupo de rock de sucesso com um futuro promissor e nenhuma necessidade notável de faturar a qualquer custo, o Pink Floyd se recusou a arriscar uma "deturpação" do uso da obra e negou os direitos de uso ao diretor.

Num duelo de egos artísticos, Stanley Kubrick contra Roger Waters rende uma disputa acirrada. No final nenhum dos dois deu o braço a torcer, e a participação do Atom Heart Mother no Laranja Mecânica acabou se resumindo meramente à capa do disco à mostra na loja de discos que o Alex visita, curiosamente posicionada próxima à capa da trilha sonora de 2001. Nosso amigo Stanley felizmente se virou com o que tinha e se consagrou com o produto final, enquanto o Pink Floyd quase faliu em certo ponto da carreira e até hoje nutre um ódio unânime pelo disco da vaca que eles tanto amavam (o disco, não a vaca). Pra completar, Stanley ainda se vingou de Roger mais de vinte anos depois, negando a ele os direitos de uso de samples do HAL 9000 de 2001, que seriam usadas no seu disco solo Amused to Death. É, o karma dos direitos autorais não perdoa ninguém.

Alex nunca teve a chance de beber o leite ordenhado dessa vaca sagrada do rock. Eu não sei dizer se o Laranja Mecânica seria tão melhor assim do que já é caso essa parceria tivesse se consolidado. Mas sendo um fã muito suspeito pra falar de Kubrick e Pink Floyd eu pessoalmente não duvido que teria sido épico. Eu acho que os dois no mínimo têm a ver. Nesse contexto cultural do início dos anos 70, acho que vale dizer que Stanley Kubrick foi para o cinema o que o Pink Floyd foi para o rock. Viajou longe, avacalhou a convencionalidade, delirou, fascinou, inovou, criou um estilo próprio e é referência até hoje. A verdadeira nata daquela arte bizarra.

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